“Sabe, acho que nosso encontro tem sido a única coisa
nos últimos dez anos que me tem feito reacreditar em Deus
pq eu realmente pensei aquilo quando te conheci.”
São 14h56 de uma segunda-feira e recebo a mensagem acima. Acordei de manhã pedindo sinais. Tenho namorado a ideia de conversar com algum deus. Flertado com a possibilidade da fé na fé. E aí, 14h56, o celular pisca e me arrasta: como pude, afinal, deixar de ter crença na vida?
Detour:
Fui uma menina nada convencional. Nunca tive Barbies, não gostava de brincar de boneca, não era atraída por pequenas cozinhas de plástico. Vivia na rua jogando futebol com os meninos, roubando goiaba do vizinho e quebrando coisas para em seguida consertá-las com meu mini kit de ferramentas Nestlé adquirido depois de um verão inteiro juntando selinhos dos mais variados tipos de sorvete. Fui uma criança cercada de amigos meninos. Uma recém-adulta também.
Até que não fui mais.
Conforme ia adultecendo, algo aqui dentro só encontrava ressonância quando em partilha com outras de mim. As amizades masculinas não rarearam, pelo contrário, mas passei a ser, com mais frequência, uma mulher rodeada de outras mulheres. Demorei muito a dar contorno a esse anseio. A dar nome a essa movimentação que foi me parecendo tão natural quanto necessária.
Mas veio: amizades amorosas. Era essa, então, a ideia. Laços tão fortes, tão profundos, que faziam de mim uma pessoa em relação com muitas outras pessoas. Com elas, eu me sentia mais resistente, mais saudável, mais eu mesma. E como sou dada àquilo que pode ser comprovado, tenho a ciência escalada no meu time: um estudo do Instituto Transcultural de Saúde Mental de Washington e da Universidade de Long Island aponta que ter amigas pode melhorar a saúde psicológica e a sensação de bem-estar das mulheres. Somos as primeiras — junto com as crianças — a desistirem de afundar navios, cantaria a bola acertadamente Ana Cristina César.
Quando eu falo das outras mulheres, eu acho que elas me contêm também; é como se, elas e eu, nós fôssemos dotadas de porosidade. A duração na qual elas estão imersas é a duração de antes da palavra, de antes do homem. O homem, quando não pode nomear as coisas, ele está em perdição, está na infelicidade, está desorientado.
O homem é doente de falar, as mulheres não.”
— Marguerite Duras
É que tem algo que vamos construindo na tessitura lenta dos afetos. Cuidado, proteção, abrigo, abertura, expansão. Dificilmente nos mostramos medrosas frente à grandiosidade do amor, como parece acontecer tão recorrentemente com os homens. O amor faz de nós fortes; enquanto deles, vulneráveis.
Trançamos as vidas umas nas outras. Ofertamos auxílio para a mãe com seu bebê — ou deveríamos —, acolhemos a 25ª desilusão amorosa da amiga como se fosse a primeira, vibramos com a aprovação no mestrado, com a tese entregue à base de lágrimas e suor, incentivamos umas às outras a correr, escalar, nadar, tiramos umas às outras para dançar. Colocamos, muitas das vezes, nossas próprias dores no bolso para colocar as das nossas amigas no colo.
Menos do que gostaríamos de admitir, o laço feminino é refeito, boa parte das vezes, na necessidade de sobreviver em um mundo que nos diz constantemente que valemos muito pouco ou quase nada. Mas vejo mudanças. Luiza celebrou dia desses o aniversário de um ano da viagem que fez com as amigas de uma vida toda. Rolou até uma playlist pública maravilhosa chamada Quem tem amiga tem tudo: trilha da viagem do Bonde pela Itália, em junho de 2023. Pati também viajou recentemente com as amigas da mais tenra infância. Encontraram-se todas em NYC e vê-las enfim juntas foi emocionante. Também observo um grupo de amigas bem próximas que se reuniram dia desses para celebrar o divórcio atordoante de uma delas.
Estamos celebrando. Festejar tem sido da ordem do cotidiano. Estamos unidas e organizadas para viver mais e melhor. Verdadeiramente. Não como um plano das ideias, mas como prática: em 2020, tive a alegria de entrevistar senhoras francesas que viviam na Maison des Babayagas, um anti-asilo feminista inaugurado em 2013 e que tem a autogestão como o maior dos valores. Nem marido, nem patrão, nem família, nem estado: mulheres autônomas, tomando suas próprias decisões — inclusive sobre a forma como desejam envelhecer.
Retour:
Volto às crenças. Volto à fé que, de forma inaugural, mas ainda assim familiar, vem cavando pequenos espacinhos do lado de dentro. Se eu quiser falar com Deus, portanto, sei do que não posso: ficar a sós. Devo, isso sim, aventurar-me, mas apoiada numa outra música de Gil, aquela que diz que onde quer que eu vá, no mundo, eu vejo a minha torre. E é só balançar. É só balançar que a corda me leva de volta pra elas.
Para ler agora: Comunhão — a busca das mulheres pelo amor, de bell hooks (traduzido por Julia Dantas), descreve a sororidade como interseccional. No livro, hooks conta como um de seus amores mais profundos se dá não com um parceiro ou uma parceira romântica, mas com a melhor amiga.
Para ler com calma: Correspondências, a troca de cartas entre a escritora argentina Victoria Ocampo e a escritora inglesa Virginia Woolf (tradução de Emanuela Siqueira, Nylcéa Pedra e Rosalia Pirolli), e o trançar de um afeto baseado, também, na invisibilidade das mulheres na literatura.
A escola está com duas modalidades de transmissão abertas:
GRUPO DE ESTUDO LITERATURA & PSICANÁLISE
Nove encontros, começando a partir de amanhã: 10/06, 17/06, 24/06, 1/7, 8/7, 15/7, 22/07, 29/07, 5/10. Todas as segundas-feiras, sempre às 19h. Para contornar e dar um duplo twist carpado nas relações possíveis e impossíveis entre literatura e psicanálise. Mais informações e inscrições aqui.
FAROL: MENTORIA PARA PROJETOS LITERÁRIOS
"Sem o Farol, sem nossos seis encontros, provavelmente teria abandonado esse projeto. A mentoria foi um processo bastante intenso e transformador para mim (só não me apavorei porque você estava segurando minha mão). Seu olhar e seu incentivo significam muito.”
— Andressa Arce
Dar contorno a um projeto e tirá-lo do papel nem sempre é tarefa fácil, natural, espontânea. Às vezes, por melhor que pareça uma ideia, ainda assim não temos a habilidade necessária para dar corpo à proposta. Mas o essencial está lá. Só falta aposta. Por isso, o ESCRITERAPIA coloca em jogo toda a sua metodologia autoral de ensino para que você consiga não só dar vida ao seu projeto literário como fazê-lo da melhor forma possível. Uma vaga. Inscrição aqui.
* ATENÇÃO: Inscrições podem ser feitas por PIX, sem a taxa do Sympla, para: gabrielleestevans@gmail.com (Nubank). Basta enviar comprovante de pagamento via e-mail, descrevendo qual é a modalidade de inscrição.
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Se Deus existe é uma mulher, se Deus existe somos nós 💗💗💗💕