A passagem que inaugura um de meus clássicos favoritos, Ana Karênina ou Anna Kariênina, a depender da tradução, de Tolstói, tem me perseguido. Acontece, com frequência: ser assombrada por determinados trechos dias e dias a fio. Fico sem saber o porquê, até que de repente o sei.
Vamos lá."Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Repita comigo: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Uau, Tolstói, uau. Que coisa, hein, meu filho?
Lacan estava certo ao reafirmar o que Freud já sabia: “A única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição é a de se lembrar com Freud que em sua matéria o artista sempre o precede, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho” – (Lacan, 1965/2003, p. 200).
Eis a sensação de que naquele lugar em que chegamos, como psicanalistas, um artista já desbravara o caminho — às vezes, na brutalidade, à facão; por vezes, no deslizar suave de pés firmes, mas poéticos.
Tolstói chegou antes onde agora meus devaneios pisam. Tenho pensado sobre esse palco em que o drama edípico se realiza. Essa família, ainda segundo Lacan, que é peça fundamental na transmissão cultural e no desenvolvimento da subjetividade. Nessa família em que, sendo o pai uma função e a mãe aquela que responde com desejo, caberá ao sujeito, a partir daí e de seus próprios recursos, realizar seu destino como ser falante.
"O que está em jogo então, para a família, é a maneira como cada um pôde se haver com a falta que o constitui, como se posicionou diante dela e como a transmite para os seus descendentes, ou seja, o que se transmite é a própria castração.”
— Artigo “A família está viva! Uma abordagem psicanalítica”, de autoria de Zilda Machado, psicanalista e membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum do Campo Lacaniano-BH/MG
Experiências familiares são categóricas. Voltemos, então, a Zilda e a Tolstói. Se em cada seio familiar o que entra em campo é a maneira como cada um tratou de se haver com a própria falta e como vai transmiti-la a seus descendentes, cada drama familiar será único — ou quase. Mas as felicidades, não. Serão as mesmas — ou quase. Encenadas, tratarão, em última instância, também de encobrir algo.
É a provocação de Tolstói, portanto, que me fissura. Ele chega antes da teoria. Instalá-se no atiçamento. Não olho, pois, para as famílias da mesma forma. Olho com mais curiosidade, com mais avivamento. Quero, sim, sustentar uma certa alegria de viver, como disse Freud, em entrevista ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926: “Afinal, vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas — a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?”.
Quero, eu sim, sustentar essa certa alegria de viver, mas não quero deixar de me encantar também pelo que desnuda cada infelicidade. Às suas maneiras. Porque nem a psicanálise, nem a vida, fecham a porta à uma nova verdade.
E por falar em família, além do supracitado Anna Kariênina, três outras obras afinadíssimas: A morte do pai, também já indicado por aqui, de um dos meus escritores favoritos dos últimos anos, o norueguês Karl Ove Knausgård; Noite em Caracas, da venezuelana Karina Sainz Borgo, que conta como a personagem, Adelaida Falcón, tem sua vida destroçada pela morte da mãe enquanto vive em um país que, da forma como o reconhece, também desaparece aos poucos; e, por fim, outro entre os meus queridinhos, Pequeno país, do rapper e escritor francês Gaël Faye. Em seu romance de estreia, Faye traz a narrativa de Gaby, um menino de dez anos, nascido em Bujumbura, filho de mãe negra e pai branco. Ao saber que sua etnia, tútsi, está sendo alvo de um massacre, sua mãe retorna a Ruanda, seu país natal, para procurar os parentes. Ambientado em 1993, em uma Ruanda em meio a uma guerra civil que culminou no genocídio de mais de um milhão de pessoas, o texto poético de Gaël Faye mostra uma crescente dos atravessamentos da infância: dos pequenos desafios pueris às situações avassaladoras — que passam das questões em seu pequeno país à própria corrosão da sua família.
Adendo: o que gosto ainda mais a respeito desse livro é o fato de que ganhou o Goncourt des Lycéens, versão do principal prêmio literário do país, escolhido por um júri formado por dois mil estudantes do ensino médio. Dois mil adolescentes. Afiados em suas leituras. Com gosto pelas histórias e em um processo bonito de suas formações ledoras. Tenho me interessado particularmente, por aqui, nesse trajeto que fazemos desde muito cedo com as letras e que faz com que nos apaixonemos pela literatura — ou não. Mas isso já é assunto para outra carta, ;-).
A última imersão do percurso do ESCRI já tem data: 13 de julho, daqui a dois sábados. É online, acontece das 10h às 13h e está com preço especial: R$ 89. Nesta edição derradeira, falaremos sobre como escrever é uma questão de sobrevivência. Tem algo que engasga se não colocamos em palavras. Vem descobrir com a gente o que é esse precisar-dizer. Vagas limitadas neste link aqui.
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a frase de tolstói é tão matadora que é impossível esquecê-la.