Escrevo com o corpo. Mas demorei muito para perceber (e aceitar) que era meu corpo que também escrevia. Fui criada para a intelectualidade: ler muitos livros, saber inúmeros conceitos, tirar excelentes notas, ter as melhores performances. Nunca fui a melhor da classe, mas estive sempre entre eles. Já adulta, fui esmorecendo. Aprender deixou de ter uma natureza brincante que me fazia descansar — como defendia o psicanalista inglês Donald W. Winnicott — para se tornar um jogo que me cobrava caro. Fui perdendo as vontades. E a escrita, inevitavelmente, por muito tempo, também passou por esse lugar racionalizado — e dolorido.
Primeiro porque eu escrevia sobre o que me dilacerava a carne. Quase nunca a matéria-prima utilizada era algo que me causava contentamento. Em segundo lugar, o perfeccionismo raramente me deixava aproveitar o processo e ficar feliz com o resultado. Escrever era trabalho de parto. Mas se por um lado meus escritos condensavam toda sorte de tristezas, por outro eram, também, um testemunho de mim. Eles me permitiam sair do outro lado renovada.
“É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self).”
—Winnicott, em O brincar e a realidade
É isso: a escrita sempre me curou e adoeceu. E quanto mais eu me intelectualizava, mais esquecido (e fraco, claro) o corpo ficava. E desmilinguida ficava, também, a minha escrita — o que me faz, agora, nessa elaboração, viajar para um dia preciso do diário de Susan Sontag:
“12 DE NOVEMBRO_Um problema: a magreza da minha escrita – ela é esquálida, sentença por sentença – muito arquitetural, discursiva.”
Onde exatamente a gente se perdeu que parou de apreciar e praticar e celebrar a escrita brincante? A escrita cirandeira, soltinha, malemolente, feita com o corpo todo? Aquela sem o intuito de ludibriar, seduzir, performar, esconder. Sabe como? Que aciona a palavra infantil, curiosa, que é simples, sem ser simplória, e que, às vezes, é só simplória mesmo, sem muitas alegorias.
“Aquilo que excrevo, que coloco num movimento para o exterior se materializa texto. Talvez, por isso mesmo, possamos pensar que o sujeito começa quando se externaliza. Quando vem à luz, ao mundo, à condição de ser vivo, como nas normas jurídicas. Aquilo que é corpo quando em contato com o exterior, ainda que já o fosse em constituição. O texto começa por inscrever-se no corpo e é, então, excrito. Como se lê em Jean-Luc Nancy: ‘escrever não acerca do corpo, mas o próprio corpo. Não a corporeidade, mas o corpo. Não os signos, as imagens, as cifras do corpo, mas ainda o corpo’.”
— Mariângela Ferreira Andrade, em tese apresentada ao curso de Doutorado em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília
Tenho desejado, para mim e para os outros, essa escrita corporal. Vira e mexe, enquanto leio alguém que admiro, flagro um pensamento que fica ali se pensando: como é que essa pessoa escreve? Será que ela fica corcunda sobre a escrivaninha? Espreme os olhos à meia luz quando atravessa a noite na escrita? Apoia a caneta nas têmporas em caso de dúvida? Vai ver que, quando a ideia voa e foge, esse alguém que admiro tamborila os dedos na mesa à espera de que a ideia volte. Ele também assovia para atrair de volta a ideia? Será que levanta, entre as páginas, para se espreguiçar? Lembra de alongar os dedos, rotacionar os punhos, dar descanso às mãos digitadeiras?
Espero que sim. Que essa pessoa lembre que é corpo.
E que não deixe de escrever por ele.
Não uma, mas três leituras absurdas. A primeira delas, a já supracitada tese de Mariângela Ferreira Andrade, intitulada Diário de um corpo autor: espaço de dança, e que aborda questões em torno da autoria do texto literário e do espaço que ele cria. Elaborado de uma forma lindíssima pensando em conteúdo, mas também em formato, Mariângela solta o grito contra as amarras acadêmicas e faz um texto que também pode ser lido pelas bordas. Explico: para além da tese que discorre horizontalmente pelas linhas, cada página traz, ainda, em um de seus cantos, o texto Gravity, de Steve Paxton, que reúne pensamentos sobre sua pesquisa em torno do que é mover-se sobre a terra. Um aceno para se movimentar livremente pela leitura.
A segunda indicação é 58 indícios sobre o corpo, do filósofo Jean Luc Nancy, primeira versão escrita para a revista portuguesa Revista de Comunicação e Linguagens, n. 33, Lisboa, em 2004. Nesse tratado, Nancy traz, de forma poética, uma reflexão da essência, dos contornos e dos transbordamentos corporais.
E, por fim, A hora da estrela, de Clarice Lispector, pela corporificação da voz, tão presente nessa narrativa. Como petisco literário, um trechinho escolhido por Helena Bressan, professora que me acompanhará na próxima imersão do ESCRITERAPIA: “Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara a chorar. [...] não sabia que tinha tanta água nos olhos”.
Ainda falando de Clarice e seu A hora da estrela, é ela quem nos diz, por meio de um narrador fictício, que enquanto tiver perguntas e não houver respostas continuará a escrever. Perceba: nem sempre é preciso saber o que dizer para começar a rascunhar palavras. Mas certamente, para escrever, é imprescindível saber se escutar. E, para se escutar, é fundamental ouvir a própria voz, essa materialização única de cada um dos nossos corpos. Tal qual a personagem Macabéa no livro de Lispector, é urgente, ainda mais neste mundo em que somos soterrados de informações, saber calar os ruídos para, então, afinar-se à própria voz narrativa. Tem algo preso aí na sua garganta e a gente sabe. Eis, portanto, nosso convite: trazer o corpo, através da voz, e, transformar essa voz em escrita. Dia 18 de novembro, um sábado, das 10h às 13h30, imersão online: Esse eu que é voz. Vamos? Pela metade do preço habitual que é para encher a sala de aula de corpos escreviventes.
Um corpo também se escreve no espaço e há tantas outras formas de escrita para além da tatuada no papel. Sempre que penso nisso, lembro de Pina Bausch, coreógrafa, dançarina, pedagoga de dança e diretora de balé, e do minidoc produzido pelo Nexo Jornal a seu respeito. O que me vem à mente, de imediato, são seus movimentos magnéticos. Sua forma magistral de preencher os espaços com presença em contraponto ao corpo delicado. Seus gestos comedidos e a personalidade introvertida — quando nas coxias da vida — contrastando com a imponência e potência da sua dança. Uma dança aberta para (e que dialoga com) o mundo. Que faz questão de não deixar no palco algo que seja só do palco. Assim como bons escritores. Aqueles que se esforçam para não deixar, na escrita, algo que seja só da escrita.
Tenho me deliciado com os textos de Heloisa Lupinacci na excelentíssima newsletter Caracteres com espaço. É do tipo de escrita que me parece corpórea. Feita com língua, olfato, tato de uma forma muito genuína e comprometida. Um dos meus escritos favoritos, aliás, é de sua autoria. Chama-se Sonhos fritam em silêncio e eu duvido que você leia sem que seu corpo também esteja submerso na experiência. É de terminar lambendo os dedos.
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Que texto mais dançante! ❤️
O que mais gosto ao te ler é esse testemunho de ti. De poder entrar pelas frestas das palavras e ver mais um pedacinho. Amei essa news <3