Recebo a foto e sou fisgada: algum transeunte, em algum café parisiense, também vê o que vejo: Beatriz, nariz enfiado numa leitura que ainda não descobri o nome, trançando anotações compenetrada, dragada, engolida, quase La Pudicizia de Corradini. Quero ir agora mesmo eu e meus olhos passarinheiros até Nápoles encarar frente a frente a escultura em mármore que brinca com o contraste entre sensualidade e castidade e que, neste exato instante, materializa-se em carne e osso e vísceras e sangue e certamente um bocado de lágrimas bem à minha frente — ou quase.
Pudica, pura, intocada e atraente: o congelamento do instante de uma mulher que floresce. Dou zoom na foto. No lábio superior de Beatriz, uma manchinha marrom-avermelhada ainda guarda o rastro do último gole descuidado em seu chocolat chaud.
Imagino os caminhos que fez até chegar ali. As cartografias afetivas que traçou, à pé, na cidade mais romântica do mundo — mas onde ninguém se beija.
Beatriz atravessou o Tuileries ou veio pelo 20ème? Vejo no Libération que jovens casais que antes compravam apartamentos no 11e arrondissement agora compram essas pequenas e raras casinhas no 20. É lá, aliás, que está o jardim de Paul. Será que viu suas berinjelas que começam, justo agora, a dar flor? “Je vais planter les légumes là en arrivant”, escreveu-me Paul dia desses.
Terá Beatriz cruzado a rue de Ménilmontant até chegar ao cemitério Père Lachaise? Passou pelos túmulos de Balzac, Chopin, Eluard, Proust, Piaf? Ou cruzou o Montparnasse e deu de cara com os restos imortais de Marguerite Duras? Tenho dificuldade de imaginá-la em lugares turísticos, abarrotados de uma massa de gente uniforme com braços esticados, celulares ou tablets a postos, registrando freneticamente cada cantinho da cidade luz, mas fazendo vistas grossas para a revoada constante de pigeons, driblando as ágeis ratazanas nos metrôs, ignorando os moradores em situação de rua.
Ratos, pombos e desespero: como a greve dos garis tira os parisienses do sério, lembro de ler, ano passado, em matéria do Estadão. Ratos, pombos e desespero. A gramática sentimental da cidade mais romântica do mundo também não deixa de sofrer de desapaixonamento à segunda vista.
É isso. Cada cidade tem riscos à sua própria maneira. Apaixonar-se, desapaixonar-se. Achar-se, perder-se. Cada cidade tem riscos à sua própria maneira e riscos à sua própria maneira diferentes para cada corpo que a atravessa. Sei, por exemplo, que Beatriz flana. Que gosta de caminhar de forma livre, mas ainda assim lúcida, sentidos abertos ao entorno. Mas será que, ao flanar, pode, uma mulher, passar despercebida? A cidade tem direito ao corpo feminino, mas temos, nós, direito à cidade?
Não havia, até pouco tempo atrás, descrição de flâneuse nos dicionários franceses. Flâneur, esse sim, sempre esteve por lá: flâneur adj. et n. Qui flâne, aime à flâner ; promeneur.
Mas e nós? Podemos caminhar sem medo? Também amamos caminhar. Também queremos não ser vistas. Também queremos ser errantes. Também desejamos o desaparecimento em meio ao zum zum zum das urbes como acontece tão naturalmente aos homens (brancos).
Porque não conheço outra forma de encaixe no espaço urbano que não flanando. Tem coisas, por exemplo, que faço toda vez que piso em um lugar fresco, para que minha bússola se alinhe geograficamente: antes de chegar, leio o mapa; depois, deixo que o mapa me leia. Saio caminhando pela cidade com a crença brava de que meus pés vão dar jeito de traçar uma topografia da memória. A cada passo, vou criando corpo. E, com esse corpo, antigo, mas, também, novíssimo em folha, vou ocupando os espaços. Equalização. Que nem li, certa vez, em uma entrevista com Alondra de la Parra, a maestrina mexicana que conduz orquestras com seu corpo todo e por quem sou fissurada: “Regência não é sobre o que está fora, é sobre o que está dentro”.
Gosto de pensar no véu diáfano de La Pudicizia de Corradini e que esconde, sem esconder, uma mulher que sonha, que pensa e, pourquoi pas ?, uma mulher que caminha. Porque caminhar não é, necessariamente, sobre o que está fora. Mas é, certamente, a cada pequeníssimo passo, sobre aquilo que se movimenta dentro.
Flâneuse, de Laurin Elkin, disponível em português na edição da fósforo, foi indicado na news anterior e segue como indicação nesta carta eletrônica porque não há jeito de pensar no caminhar feminino sem passar por ele. Além dele, Não escrever [com Roland Barthes] e a experimentação de Paloma Vidal em uma pesquisa acadêmica visceral e sublime, entre duas cidades e muitos movimentos: São Paulo e Paris.
Também para fazer caminhar placas tectônicas internas e seguindo na mesma temática: Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, e os discursos como um lugar possível e passível de afirmação.
Por fim, o livro Torpedos, de Beatriz, que está à venda aqui, e sua newsletter, gratuita e semanal, que pode ser assinada neste link.
No sábado próximo há imersão online — para pensar a escrita através da memória —, e na segunda seguinte começa o grupo de estudo Literatura & Psicanálise, em que elaboraremos, juntos, os limites e deslimites do encontro entre essas duas searas do saber. A programação completa está aqui:
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GRUPO DE ESTUDO LITERATURA & PSICANÁLISE
Nove encontros: 27/5, 3/6, 10/06, 17/06, 24/06, 1/7, 8/7, 15/7, 22/07. Sempre às 19h.
Para contornar e dar um duplo twist carpado nas relações possíveis e impossíveis entre literatura e psicanálise. Mais informações e inscrições aqui. Apenas dez vagas.
IMERSÕES
Nossas imersões, agora, deixam de ser temáticas e com edições independentes umas das outras e passa a ser um percurso focado em desenvolver a escrita a cada edição. Neste semestre, ainda restam dois encontros e você pode embarcar com a gente escolhendo-os individualmente ou selecionando as duas imersões (há desconto!):
25 de maio: ESCREVER: uma questão de_ memória
22 de junho: ESCREVER: uma questão de_ sobrevivência
Sempre das 10h às 13h, com intervalo de meia hora para almoço. Mais informações e inscrições aqui e aqui. Apenas duas vagas para cada uma das imersões.
GRUPO DE APROFUNDAMENTO PLONGÉE
Para aqueles que já têm certa familiaridade com a escrita, o PLONGÉE nasce como uma turma de no máximo cinco pessoas — selecionadas de acordo com o perfil e considerando o objetivo de que o grupo tenha uma mesma base, mas diferentes habilidades textuais. Abriremos, juntos, caminhos possíveis de investigação e construção dentro dos processos de escrita. A partir de nossa metodologia autoral de ensino, partiremos de um aprofundar íntimo e cruzaremos cada voz narrativa com os olhares coletivos do grupo, no intuito de descobrir, uno e em grupo, caminhos possíveis para uma escrita renovada. Para participar da seleção, inscreva-se gratuitamente aqui. Em seguida, você receberá um questionário. Importante: depois da seleção os encontros não são gratuitos. Leia atentamente as informações para saber mais sobre os preços. Os encontros acontecem nos dias 21/5, 28/5, 4/6, 11/06, 18/06. Sempre às 19h. Mais informações e inscrições aqui.
FAROL: MENTORIA PARA PROJETOS LITERÁRIOS
Dar contorno a um projeto e tirá-lo do papel nem sempre é tarefa fácil, natural, espontânea. Às vezes, por melhor que pareça uma ideia, ainda assim não temos a habilidade necessária para dar corpo à proposta. Mas o essencial está lá. Só falta aposta. Por isso, o ESCRITERAPIA coloca em jogo toda a sua metodologia autoral de ensino para que você consiga não só dar vida ao seu projeto literário como fazê-lo da melhor forma possível. Uma vaga por mês. Mais informações enscrição para maio e junho aqui e aqui.
* ATENÇÃO: Inscrições para todas as modalidades podem ser feitas por PIX, sem a taxa do Sympla, para: gabrielleestevans@gmail.com (Nubank). Basta enviar comprovante de pagamento via e-mail, descrevendo qual é a modalidade de inscrição.
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super!